sábado, 27 de setembro de 2014

No PS Central

    Ainda não mudei de fato para Ribeirão, por vários motivos, mas o principal foi a falta de comunicação. O que é irônico para uma jornalista. Tanto que cheguei ontem para resolver alguns senões e não consegui chegar nem perto do começo. E hoje, a sucessão de desencontros não foi diferente. De manhã tentei encontrar minha advogada, Lucélia Nunes, mas ela tinha saído porque o neto se acidentou (e ainda não consegui saber o que aconteceu). Então aproveitei que meu torcicolo, que me faz sentir dores constantes e agudas há meses, expandiu-se para o braço direito, me impedindo os movimentos. E aproveitei para conhecer o sistema de saúde público na cidade.
     Primeiro fui no Hospital Público da Bernardino de Campos, todo novinho - e nem estava cheio. Explliquei para a mulher da administração que sou de Santos, que estou travando, que viajaria mais essa noite, que não posso tomar qualquer remédio porque tenho reações alérgicas que me causam choque anafilático... ela falou com a médica, tentou convencê-la, mas não teve jeito: teria de ir até o PS Central. E foi com tristeza nos olhos que me deu a notícia.
    Cheguei lá 10h15 no tal PS Central do lado da rodoviária. Estava muito cheio, muito mesmo. Mas em menos de uma hora me chamaram para a triagem. Tive alguma esperança. Fiquei conversando com uma senhora baixinha, loirinha e simpática, que estava com dores no corpo, na cabeça e teve febre à noite. Acompanhada da filha e das duas netas, logo ficou sozinha, pois as crianças precisavam almoçar. Seu medo é que lhe descontassem o dia, no laboratório de análises clínicas em que trabalhava. "Puxa, se é gente da área de saúde, vai entender, é só levar atestado",  contestei. Conversamos tanto que nem percebi que já era 12h30, saí para tomar vitamina e comer pastel na rodoviária, um almoço nada saudável, diga-se de passagem.
     Na volta continuamos a conversa. Soube que além da filha, tem 3 rapazes e que o mais novo, de 21 anos, é viciado em crack. Mas ela estava feliz porque conseguiu internação em tempo recorde para o filho. Parecia esperançosa, apesar do rapaz já ter sido internado 3 vezes. Contou que ele começou a usar drogas aos 16, com uns traficantes "que vendem lá perto da escola". Experimentou o crack há 2 anos e nunca mais largou. Some por até 15 dias, volta magro, sujo, desnorteado, fedido. Disse o filho trabalhou por um mês e quando recebeu o primeiro salário, gastou tudo com a droga. Mas o dono da serralheria o aceitou de volta. E, muito esperta, pediu para o patrão do filho fazer o pagamento diretamente para ela.

    Durante esse tempo, não deixamos de perceber um senhor que esperava o mesmo que nós para a consulta de sua mãe, de 95 anos (ele fazia questão de frisar). Perguntei se eles não teriam prioridade, já que era um idoso de mais de 70 anos, acompanhando uma anciã. "Não, aqui é por emergência e urgêngia", ou seja, priorizam os casos mais graves. Acho que se alguém de mais de 70 anos está levando a mãe de 95 ao PS já é porque a coisa deve ser grave. Mas quem sou eu para achar alguma coisa?
     Já eram 13h30 quando enfim, fomos chamadas para outra sala, a da consulta. Eu era a última da lista! Ela foi encaminhada para fazer exame de sangue, com suspeita de dengue. Na sequência, outra companheira de espera começa a me contar sua história. Há algo muito curioso que sempre acontece comigo: as pessoas contam suas vidas. Do nada começam a me contar acontecimentos mais marcantes, sentimentos mais profundos. Isso é excelente para uma repórter! E acontece em todo lugar. Pode ser no ônibus de viagem, na padaria, na festa de celebridade, no PS. Algumas vezes, estou cansada e só escuto, mas na maioria dos casos, me interesso profundamente e pergunto muito.
     Quando ela me fala da filha de 23 anos, me surpreendo. Muito bonita e negra, sem qualquer maquiagem, mesmo com cara abatida e de dor, aparentava uns 30 anos. "Foi mãe com que idade?", perguntei incrédula. "Aos 19. Tenho 42". Fiquei ainda mais surpreendida quando me disse que tinha 6 filhos. Casou aos 16 com o primeiro namorado, pensando que teria liberdade, já que foi criada pela avó paterna e essa não a deixava fazer nada.
     Na separação dos pais era um bebê de 3 anos, o pai ficou com a guarda e ela nunca mais viu a mãe. A reencontrou aos 23 porque saiu a sua procura. Mas sem a convivência não conseguiu possuir o amor materno. E o namorado bonzinho transformou-se num homem violento. Ela apanhava porque sorria ou porque estava muito séria. Era difícil passar um dia sem apanhar. Aos 32 anos e com 5 filhos decidiu que aquilo não podia continuar. A menina mais velha tinha 13 e sofria muito ao ver a mãe apanhando. O marido disse que ela iria morrer de fome, já que parou de estudar e nunca trabalhou (para certas pessoas cuidar de filhos e casa não é trabalho). Pior, disse que nenhum homem iria querer uma mulher com 5 filhos. Ela foi mesmo assim!
    Terminou o colegial, fez curso de Segurança. Seu sonho é ser delegada e mandar para a cadeia todos os homens que batem em mulheres. Casou e teve mais uma filha. No que percebeu que não iria dar certo, nem hesitou em separar de novo. Ele agora quer a guarda da menina, entrou na Justiça. Ela está na defensoria pública. Já passou por perícia psicológica, a criança também. As duas filhas mais velhas moram, trabalham e fazem faculdade em Franca. Já disseram para ela mudar para lá com a caçula, a de 17 e o único menino de 14, mas a de 19 faz faculdade aqui "e eu não querro deixar ela sozinha". Achei incrível ela já ter três filhas na faculdade,  mesmo o pai tendo sumido por um tempo e nunca ter ajudado com pensão.
    Então não me contive e disse para ela mudar, assim fica mais difícil perder a guarda da caçula. Que a de 19 já tem amigos, trabalha, estuda e Franca é muito perto, além do clima ser muito mais agradável. Contei um pouco da minha história também.  Que nem é tão difícil uma mãe perder a guarda de filho. Apesar de toda essa virada, Suely (como a chamo aqui) tem baixa estima. Não seria diferente para alguém que cresceu sem mãe e quando a encontrou não teve a recepção esperada, alguém que confiou em um homem e sofreu tantas humilhações. Pior, ela está muito preocupada com suas fortes dores estomacais.
    Teria passado mais algumas horas sabendo detalhes dessa vida tão rica, mas, às 15h, fui chamada para a consulta. Em pouco mais de 5 minutos a médica Thaís Cristina Gonçalves me receitou Baclon 10 mg, de 12h em 12h, por 5 dias. Ela não tocou no meu pescoço, não pediu um Raio X. Perguntei sobre fisioterapia, contei meu histórico de escoliose e estreittamento de vértebra. Pedi que me encaminhasse para um ortopedista, já que pretendo mudar para cá. "Não, você tem que ir no Posto próximo de sua residência, marcar clínico geral, daí ele que vai te encaminhar". Ok, entendi, no meio do ano que vem pode ser que eu comece uma fisioterapia.
     Saí de lá 15h25. Foram mais de cinco horas para ter uma receita. Remédio que já tomei e estou aqui esperando fazer efeito. Mas não fiquei irritada ou indignada. Fiquei foi impactada com essas duas histórias. Não fosse a demora, não as teria conhecido. Conversando com moradores de bairros periféricos percebi que Ribeirão não é só a Califórnia brasileira, que o crack está mesmo em toda parte, que o SUS é mesmo um sistema único*, principalmente na falta de médicos e no atendimento. Onde estão os cubanos, por favor?

* Viajo bastante e já morei em algumas cidades, usando o SUS, invarialvemente. Mas preciso colocar uma nota sobre o SUS de Santos, que é em parceria com a Prefeitura. Não é perfeito, mas demora menos para marcar ou para atender do que a Rede Privada, tem turmas de pediatras, enquanto vejo que falta essa especialização em quase todo o País.   

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